Nationalpark Bike Marathon

Na sequência de provas que participei este verão, publico aqui o texto que escrevi para a revista Bike Action no mês de Outubro





Sobre Paredes e Escaladas

A tradução literal de « Hit the wall », do ingles, é bater na parede. Mas a expressão é usada para descrever aquele memento tão familiar para quem pratica esporte de resitência, quando o corpo sem cerimônia ou aviso prévio, pára de brincar. Você se encontra com um número avassalador de quilômetros pela frente e destituído de qualquer energia. Troca a marcha umas duas ou vinte vezes, olha sem entender a orda de ciclistas te ultrapassando e começa a fazer planos incoerentes de como vai terminar a prova. FYI meu caro, você “bateu na parede”.

Outro dia eu bati na parede. Três vezes na mesma prova, para ser exata. Vou te contar, sem o menor constrangimento, como.

 Achando que era a mulher maravilha e ignorando o conceito de que “descanso também é treino”, entrei num ritmo frenético de 16 horas de treino por semana somadas às 40 que passo no escritório. Tudo muito bonito e emocionante quando o Strava começa a te chamar de Rainha da Montanha, você baixa seu tempo em quase duas horas na mesma maratona de 100km que correu dois anos atrás e sobe num pódio internacional. Mas o corpo não leva desaforo pra casa. Logo logo o meu me chamou na responsa.

Após ter corrido o Grand Raid que é uma das provas mais tradicionais e duras de maratona, contei 7 dias e alinhei de novo para largar na Nationalpark Marathon. A prova é considerada a mais bonita da Europa em termos de paisagem e percorre 138km com 4.000 metros e subida na região remota do Engadin, leste da Suíça e fronteira com a Austria e a Itália. Ela circunavega o Parque Nacional Suíço, que protege glaciares, lagos turqueza de degelo e uma fauna e flora super especiais. De babar.

Estava frio quando largamos às 7 da manhã, e mais ainda quando saímos do hotel pedalando às 6. Dando pinta de durona, fui apenas de short, camisa manga curta e camiseta térmica por baixo. A primeira subida era longa indo em direção ao fundo do vale. O sol ainda não tinha nos alcançado e procurei me manter num grupo com ritmo forte para me aquecer. Não me aqueci até a segunda hora de prova, quando atingimos o primeiro cume onde o sol já tocava o chão. Dali para frente a prova ficava técnica, entrando e saindo de single tracks ora na floresta, ora na lateral de um cânion. Essa trilha é famosa e sobe até Val Mora, na fronteira com a Itália. Foi ali que (dessa vez literalmente), bati na parede pela primeira vez.

Imagine a cena: Sob as rodas, uma trilha bem batida de 1 metro de largura. Do lado esquerdo do guidão, uma parede de pedra. Do lado direito, um despenhadero com o rio correndo no sentido contrário lá em baixo. Na sua cabeça, uma voz dizendo: “Sem euforia para não perder a concentração”. No corpo, a adrenalina correndo e mandando a voz ir se catar.

Entrei na curva com velocidade e saí dela como pude, me jogando de encontro à parede num ato de puro reflexo. Simultâneamente, um biker que não estava na prova e vindo em sentido contrário cambaleia com pânico nos olhos sabendo o que o espera lá em baixo, e quase por milagre, se reequilibra seguindo adiante. Até hoje não sei de onde ele veio e para onde foi depois de descobrir que 1.500 mountain bikes vinham naquela mesma trilha. Só calculei o que tinha acabado de acontecer quando senti o sangue escorrendo no joelho. Segui adiante porque corpo quente não sente dor.

A próxima subida não demorou a chegar (relativizando “demora” numa prova de 8 horas) e foi na segunda metade que senti a parede se aproximando novamente. Agora vejo claramente a reação em cadeia que o ritmo acelerado, o corpo roubando sorrateiro energia extra para se manter aquecido e a falta de água e comida por descuido causaram. Mas ali, com mais de 70km pela frente, eu não conseguia entender como de repente todo mundo tinha ficado tão forte... Como se não fosse nada, 10, 30, 40 ciclistas me passavam por todos os lados. Era como se a inclinação da subida tivesse mudado de reprente de 8 para 18%. Bati forte na parede a ponto esvaziar duas bisnagas de gel de uma só vez. A ponto de ver o céu meio granulado lá na frente. Cheguei ao topo com o corpo dizendo que se eu não me sentisse melhor, abandonaria a prova. Por motivos óbvios, a cabeça não deu o ok.




Cheguei ao fundo do vale em Livigno, Itália, vasculhando os bolsos. Encontrei duas barras energéticas que foram devoradas numa investida só, antes da próxima e monumental subida. Foi quando olhei para ela que bati na parede pela terceira vez. Precisava passar para o outro lado e tinha duas opções: ter dor no pescoço olhando para o alto tentando ver o fim da subida, ou baixar a cabeça e começar os trabalhos de escalada. Fiquei com a segunda.

 
A Chaschauna, como é conhecida, é um single track que te leva de volta à Suíça variando entre 12 e 20% de aclive, com 1000 metros de ascenção em 12 km.  A maioria dos participantes empurra a bike, mas para mim o segredo foi alternar, subindo na bike de novo sempre que possivel para evitar cãibras.

Por incrível que pareça, foi ali que comecei a me sentir bem novamente(relativizando “bem” numa prova de 8 horas). Cheguei ao topo com sentimentos misturados: Sabia que a parte mais dura da prova tinha ficado para trás, o que era animador, mas duvidava do meu estado para encarar os 60 quilômetros que ainda tinha pela frente. O debate interno durou pouco porque veio a descida. Agora deixe-me falar sobre a descida: Era como fazer down hill na lua. Te juro. Desconsiderando que os conceitos de “down hill” e “falta de gravidade” sejam antagônicos, imagino que é assim que uma descida na lua deve ser. Tudo cinza e sem vida, rochas soltas para todos os lados, crateras enormes e um céu muito azul no horizonte. Câmbio, 1,2,3, Blush para Terra estabelecendo contato, rampa de aterrissagem em cheque, descida iniciada!
 
 

Sem muita firula vou resumir os últimos 30 quilômetros da prova: Desnecessários. Muitos deles planos com vento contra, algumas subias curtas e um sentimento de “isso aqui não acaba mais”. Mas talvez seja esse o teste de resistência que faz com que os europeus dominem a cena do ciclismo. Talvez sejam os desafios icônicos de Alp d’Huez no Tour de France, Stelvio no Giro d’Italia, Pas de Lona no Grand Raid e Chaschauna no Nationalpark que façam ciclistas de elite mais preparados que os outros, e ciclistas comuns como eu e você menos intimidados pelas paredes que, sem aviso, se ergem pelo caminho.

Boa escalada.

Comentários

  1. Caramba, eu não canso de me impressionar com a ogra que existe dentro de vc...quem vê pensa...tão bonitinha! Bonitinha é?!...deixa esse mulherão subir na bike! Vc é absolutamente demais, quando eu crescer eu quero não só pedalar como você mas escrever tb! Te admiro Blush!
    Pink beijos

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  2. Oi Andrea que prova difícil essa, hein? Apesar das dificuldades, físicas e mentais, você superou e realizou mais essa pro seu currículo! És uma guerreira mesmo, parabéns! Bjs

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  3. Luli, desceu até uma mini-lágrima... <3 Pink beijos de volta pra você, e a admiração é recíproca - pela atleta e pela pessoa linda por trás da atleta!

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