Blush em Ticino


Daí que mesmo vivendo num cartão postal, não dá pra ficar parada fazendo pose. Eu preciso de ação, movimento e com mais frequência do que deveria, um perrengue aqui e ali.

E foi assim que chegamos a Ticino, região italiana da Suíça. Lugano, a irmã maior e mais velha, você já deve ter ouvido falar. Passamos por ela e continuamos subindo, até Tesserete. O vilarejo tem aquele capricho suíço inconfundível: calçadas impecáveis, flores nas janelas das casas e montanhas emoldurando a paisagem.



A cidade estava em festa; naquele fim de semana, os melhores ciclistas da Suíça e países vizinhos estavam lá para o BMC Swiss Cup. Antes de sair pra treinar no circuito, o Christoph me entrega um mapa e diz: "Ta vendo aqui circulado? Monte Croce. É um pedal maravilhoso. Duro, mas maravilhoso. Você poderia ir até Monte Bar, mas acho que tem neve ainda. Leve o telefone, tá?"


Eu, que não ia competir no dia seguinte, queria mais era passar o máximo de tempo possível em cima da bike pra aproveitar o dia lindo de primavera. Pela curva de nível, ví que seriam cerca de 900m de desnível em cerca de 30km. Uma subida considerável :)

Comecei o pedal saindo do hotel e passando pela rua do mercado. Ao invéz de "Bonjour", as pessoas me desejavam "Bongiorno". Saí do vilarejo subindo a estrada sinuosa de asfalto, com o lago Lugano cintilando lá em baixo. As árvores exibiam orgulhosas suas primeiras folhas verdes da estação. O riacho descia pesado, carregando a água gelada que há poucas semanas era neve no alto das montanhas.


Chequei o mapa em Bidogno e vi que era hora de começar o "off road". A subida ia ficando mais íngreme e cheia de cascalhos. As árvores eram agora pinheiros verde-escuros. Depois de meia hora de esforço, a estrada começou a ficar plana novamente, e vi que estava seguindo a curva de nível. "Estou quase em Monte Croce, agora é mais uma investida de 400 metros pra cima e chego ao meu destino, Monte Bar."


Acontece que o que avistei de Monte Croce foi um pico nevado. E foi preciso que eu e eu mesma entrassemos num acordo:
- Putz, volta daqui. Deve estar gelado lá em cima e você só tem o corta-vento.
- Ah, mas falta tão pouco...
- Tão pouco? Andrea, fala sério... Isso aí são pelo menos mais 10km morro acima. E na neve.
- Mas a vista deve ser deslumbrante e imagina o down hill que divertido.
- A vista já é deslumbrante daqui, e sim, tô imaginando o down hill e o frio de trincar.
- Nossa, como você é franguinha...
- Nossa, como você é estúpida!
- Posso falar uma coisa?
- Fala.
- Essa paradinha me deixou com frio. Se eu descer agora vou ficar com mais frio ainda. Se subir, esquento... Entendeu?
- Você é muito safada. Vai então, mas depois não reclama...




A sudida continuou e a camada de neve sobre a estrada ia ficando cada vez mais espessa. À medida que o frio apertava, eu pedalava mais forte pra manter a temperatura do corpo. Tive que descer e empurrar a bike perto do topo, os pés ficando molhados com a neve.




Vesti o corta vento e comecei a descer imediatamente, pra não deixar o frio tomar muito espaço. O início da descida foi insano, com a traseira da bike saindo pra todos os lados. Freiar não adiantava muito, só mesmo o jogo de corpo pra tentar manter o equilíbrio e me salvar de um banho de neve semi-derretida.


Enquanto eu perdia altitude, o chão passou de branco para marrom-molhado e em seguida pedregoso. Muito pedregoso! As curvinhas fechadas exigiam concentração, mas sempre que podia eu olhava pro horizonte e o tal nó na garganta vinha fortão. "Obrigada. Muito obrigada por eu ter saúde para chegar até aqui."

As pedras da altidude viraram floresta e agora era com as raízes e drops que eu tinha que me preocupar. O cérebro dizia pros olhos: "Esqueça os obstáculos. Procure os pontos seguros". Os olhos obedeciam, o resto do corpo seguia naturalmente e a bike era apenas uma extenção daquela ordem. A descida era como uma música. Eu só precisava perceber o rítmo e dançar. E foi o que fiz, até chegar, em quase transe, de volta a Tesserete.


No dia seguinte torci e gritei a corrida inteira e ver o Christoph no pódio foi a cereja do bolo.

Comentários

  1. Seus "self-dialogues" são os melhores!! Muito inspiradores, em todos os sentidos!

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  2. adorei, como sempre...
    vc escreve como se fosse (e é) um conto de fadas!
    lindo!

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  3. Muito legal!

    Parabéns pela disposição!

    Abs

    Leandro

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